sexta-feira, 1 de maio de 2009


Bloqueio

Já não poderia adiar mais. Inventara muitas desculpas. Um dia eram as compras, em outro, a faxina da casa ou sair com aquele amigo que há muito não via, e, ainda por cima, trabalhava doze horas por dia.
Hoje, tudo estava em ordem, tudo em seu devido lugar, dormira muito além do costumeiro, nenhum compromisso de última hora.
Bastava se concentrar. Tudo estava claro em sua mente. Havia elaborado com muito cuidado. Fechava os olhos e aquilo se desenrolava como um filme à sua frente. Planejara cada detalhe, nada poderia dar errado. Ninguém o estava obrigando a nada, mas, e seus projetos? E aquelas idéias que insistiam em brotar a todo instante?
Desligou os telefones, a sala estava iluminada, a temperatura agradável. Não havia nuvens no céu, todo aquele azul era inspirador. Uma leve brisa balançava as folhas novas da antiga paineira e provocava uma lenta chuva das belas flores lilases do jacarandá. Os sabiás exibiam, atrevidos, suas canções prediletas e provocavam a inveja dos sanhaços e bem-te-vis.
Já estava devaneando novamente. Tomou um copo de água, alongou-se, deu algumas voltas pela sala.
Tentou se lembrar de quantos anos estava se preparando para aquele momento. Já não sabia ao certo. Tantas coisas haviam acontecido, tantas pessoas passaram por sua vida. É engraçado como, de repente, pessoas com quem convivera intensamente simplesmente desapareciam, mudavam de cidade ou arrumavam novos empregos, novos amigos...
Gostara muito do Alfredo. Passaram por situações tão adversas, um ajudando ao outro, sem cobranças. Quando foi a última vez que o viu? Por que não ligou para desfazer aquele mal entendido? Por que preferiu ficar magoado, remoendo aquela velha e conhecida rejeição?
As velhas lembranças lhe tomaram umas duas horas... Levantou-se, lavou aquelas lágrimas que insistiam em subir-lhe aos olhos. Procurou algo para comer, para empurrar aquele nó na garganta...
Sentou-se mais uma vez.
Só percebeu que era noite quando um raio prateado entrou pela janela. A escuridão chamou-o para fora. Era estranho como a rua estava deserta e quieta. O perfume das flores noturnas era inebriante. Adorava caminhar de noite.
Sobre a escrivaninha, uma folha em branco...

Elisabete Rodrigues Limeira